A passagem de milénio coincidiu em Portugal com uma diminuição acentuada do volume de construção de habitação. Depois de um “boom” vivido em finais do século passado, em que se chegaram ultrapassar os 100.000 fogos construídos anualmente e durante o qual, em termos de habitação social, se concretizou nas áreas metropolitanos do Porto e de Lisboa o PER - Programa Especial de Realojamento - que permitiu resolver os problemas de habitação de cerca de 48.000 famílias carenciadas, nos anos seguintes verificou-se uma queda brusca da construção de habitação (em 2014, atingiu-se o valor mínimo histórico com apenas 6.934 fogos licenciados).
Esta enorme redução do número de fogos construídos teve fortes consequências no mercado habitacional, provocando a escassez e o desajustamento da oferta, o aumento da especulação imobiliária e a subida muito significativa dos preços. Como resultado, intensificaram-se as dificuldades de acesso à habitação de muitas famílias.
O reconhecimento da gravidade desta situação, que progressivamente tendia a piorar, levou o Governo Português a procurar desenvolver novas políticas de habitação que permitissem resolver as necessidades do setor habitacional e, em particular, das famílias a viver em condições indignas.
Neste sentido, foram lançados vários instrumentos legislativos, entre os quais são de destacar a Estratégia Nacional para a Habitação, o pacote denominado “Nova Geração de Políticas de Habitação” e, mais recentemente, a Lei de Bases da Habitação que, pela primeira vez na Democracia Portuguesa, estabelece o quadro global, assim como um conjunto de princípios e regras gerais de atuação dos poderes públicos e privados, na área da habitação.
É neste âmbito que se enquadra o 1º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, criado a 4 de junho de 2018, através do Decreto-Lei n.º 37/2018, e especialmente dirigido para as famílias que vivem em condições indignas e que não dispõem de capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada.
A implementação do 1º Direito fundamenta-se numa nova figura de governação e planeamento estratégico, a Estratégia Local de Habitação (ELH), elaborada pelas autarquias locais e que consubstancia as políticas habitacionais para os territórios concelhios. Assim, a materialização do apoio financeiro decorre do papel imprescindível reconhecido aos municípios, que devem desenvolver e apresentar ao IHRU as suas ELH com o diagnóstico das situações existentes, a identificação das soluções propostas e a programação dos investimentos a apoiar para resolver as suas carências habitacionais.
Podem beneficiar do Programa 1º Direito um conjunto alargado de entidades, incluindo o Estado, as associações de municípios, os municípios, as juntas de freguesia, as empresas públicas, o 3º Setor (misericórdias, instituições particulares de solidariedade social e pessoas coletivas de utilidade pública), associações de moradores, cooperativas de habitação, os proprietários de imóveis situados em núcleos degradado, e as famílias enquanto Beneficiários Diretos.
As soluções habitacionais previstas ao abrigo do 1º Direito são basicamente quatro, reabilitação, construção, aquisição e arrendamento, podendo estas no entanto serem combinadas, ou seja, é possível por exemplo adquirir um terreno e aí construir um prédio habitacional, ou adquirir e reabilitar uma fração ou um prédio habitacional.
Em termos operacionais, e após a aprovação da ELH pelo executivo e pela assembleia municipal é assinado um Acordo de Colaboração como IHRU (tramitado numa plataforma digital criada para o efeito) iniciando-se assim o processo de implementação das soluções habitacionais previstas na ELH. A partir desse momento, o município tem de realizar um extensa lista de tarefas, que incluem contactos com as famílias e com as entidades beneficiárias, bem como com os projetistas, construtores e promotores imobiliários para, posteriormente, poder submeter as candidaturas com as soluções concretas ao IHRU (tramitado em formulários Excel), devidamente programadas ao nível físico e financeiro. Só depois de analisadas e aprovadas estas candidaturas pelo IRHU se pode avançar para a execução das obras.
Convém referir que, para além das soluções de âmbito público pelas quais são diretamente responsáveis, os municípios na prática têm um ação preponderante no apoio à materialização das candidaturas das outras entidades beneficiárias, em particular dos Beneficiários Diretos, os quais, na maioria dos casos, não possuem conhecimentos nem capacidade financeira para desenvolver sozinhos os procedimentos necessários.
É de sublinhar que com a aprovação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) o apoio financeiro no âmbito do Programa de Apoio ao Acesso à Habitação pode atingir os 100%, desde que os fogos estejam concluídos e entregues a cerca de 26.000 famílias até 30 de junho do 2026.
Embora o Programa 1º Direito se tenha iniciado há cerca de 4 anos, os dados conhecidos indicam que a sua taxa de execução é ainda, infelizmente, muito baixa. Com efeito, a implementação do 1º Direito não têm sido fácil, sendo possível identificar um conjunto de dificuldades direta ou indiretamente relacionadas com o setor habitacional que têm contribuído para este facto.
Dificuldades indiretamente relacionadas com o setor habitacional:
Dificuldades diretamente relacionadas com o setor habitacional:
Estas dificuldades tem criado muitos entraves à execução do Programa do 1º Direito, observando-se situações de algum desânimo e mesmo de desistência de algumas candidaturas.
Contudo, e apesar das dificuldades que se sentem no presente, existem vários fatores que concorrem para que a materialização do 1º Direito possa ter bons resultados.
Repare-se que há neste momento condições financeiras únicas, designadamente as provenientes das verbas do PRR, que incluem um montante financeiro global de 2,73 milhões destinados ao setor da habitação, dos quais 1,21 milhões de euros estão reservados para o 1º Direito. Repare-se ainda, e isto é essencial, que todos os intervenientes neste processo, Governo, IHRU, Câmaras Municipais, Promotores Imobiliários, Construtores, Projetistas e Famílias estão fortemente interessados no sucesso do Programa 1º Direito e tudo farão para que isso seja possível.
Importa, pois, unir esforços para ultrapassar as dificuldades agora identificadas, aproveitando esta oportunidade para resolver um gravíssimo problema que afeta milhares de famílias que, em pleno século XXI, continuam a não ter uma habitação digna para residir.
Miguel Branco-Teixeira
Prof. Universitário e Consultor da AGENDA URBANA